Da janela de seu apartamento, no Copan, ele avista praticamente um guia de ruas da cidade e também o seu relógio de “parede”, um daqueles enormes instalados no topo dos prédios. “Todo dia de manhã eu vejo a temperatura nele”, brinca Victor Rice, que ficou impressionado com o edifício em sua primeira visita ao Brasil. “Sempre me encantou. Uma cidade em si, no meio de outra cidade”, completa.
Multiinstrumentista formado em conservatório e apaixonado por Bela Bartók, abre um sorriso enorme toda vez que fala de Don Drummond, trombonista -- morto ainda nos anos 60 -- dos Skatalites, banda fundadora das bases do ska, ritmo que é a base de todo o seu trabalho, que também passeia pelo dub, reggae e rock steady sempre com um tratamento que dá a impressão, para quem ouve, de ter voltado no tempo.
Com uma carreira bastante longa, trabalhou com grandes nomes da música atual, como The Slackers, Toasters, Scofflaws, New Yor Ska Jazz Ensemble, entre muitos outros, e também com ícones da história jamaicana, como Desmond Dekker, Laurel Aitken, Glen Brown e o próprio Skatalites.
Atualmente, entre os inúmeros projetos está a banda brasileira Firebug, que acaba de lançar o segundo disco, On the Move, e também a mixagem de Radiodread, versão em dub de Ok Computer, do Radiohead, e próximo disco da banda americana Easy Star All Star, que se apresenta, em maio, no Via Funchal com o show de seu primeiro trabalho, Dub Side of the Moon. Sim, é isso que você está pensando, o disco clássico do Pink Floyd em versões impecáveis de dub. “O disco é ‘Oz-compatível’”, brinca.
Entre a mixagem de uma música e outra, Victor nos recebeu no estúdio El Rocha, em Pinheiros, São Paulo, para falar um pouco sobre a sua carreira e os planos para o Brasil.
Para começar, você poderia contar como começou sua história com o Brasil.
A minha primeira vez aqui foi em dezembro de 1998, tocando baixo com os Toasters, um grupo nova-iorquino de ska. Tocamos em São Paulo, Curitiba e Santos e passeamos por Paraty. Eu já tinha ido para a Europa várias vezes, e nunca senti a energia que sinto aqui no Brasil. Não é fácil explicar, mas me impressionou de repente. Quero morar no Brasil sempre, mas tenho que ficar indo e vindo por causa de trabalho.
Por que decidiu morar em São Paulo?
Eu pirei por São Paulo. Como nova-iorquino, reconheci a maneira paulistana de viver. Me lembra Nova York quando mudei para lá, em 1985, uma época bem melhor que agora. Depois do reino do prefeito Rudolph Giuliani, NYC tornou-se um lugar limpo, seguro, caríssimo e chato. Hoje em dia está quase impossível para um artista morar na ilha de Manhattan. Você tem de ser rico para ficar lá. Numa palavra: os paulistanos têm tolerância, NYC não tem mais.
Você ainda mora no Copan?
O Copan sempre me encantou. Depois da minha primeira visita voltei várias vezes para Sampa e sempre fiquei olhando para o prédio. Sempre achei bacana, tanta gente morando num lugar só, perto de tudo, no centro... Uma cidade em si, no meio de outra cidade. Quando decidi morar em São Paulo, fui direto para o Copan e achei um apartamento. Lá tem de tudo, café, padaria, lavanderia, restaurante, igreja...
E você freqüenta a igreja?
Não, mas eu fui coroinha durante quatro anos e aprendi muita coisa. Hoje eu vejo o estúdio como uma igreja, é onde eu fico perto do criador. É onde você está aberto, quer criar alguma coisa, não fala palavrões, tem que se comportar mesmo.
Fale um pouco do Firebug?
2006 começou muito bem para o Firebug. O disco novo, On the Move, foi lançado pelo selo Deck Disc, que está investindo no futuro do grupo e no meu futuro como produtor. A banda continua tocando e escrevendo música e, quando estou no Brasil, toco escaleta com eles nos shows. Eu curto muito esse trabalho..
Como foi gravar um disco com uma banda brasileira morando em NYC?
Como foi? Foi preciso! Eu tinha que ficar em NYC por causa de trabalho, mas o projeto estava gravado no estúdio El Rocha, em Pinheiros, e eu levei para NYC para editar e mixar. Aproveitei para gravar alguma coisa com a minha galera de lá, o que seria massa. Integrantes das bandas Slackers, Scofflaws e Dub Is A Weapon participam do disco.
Mudando de projeto, como surgiu a idéia para o Dub Side of the Moon?
Eu fiz parte do projeto, gravei o baixo, mas não faço parte da banda [Easy Star All Stars] porque minha agenda não me permite ficar em turnê. A idéia foi dos produtores do selo Easy Star e era só mencionar para todo mundo imaginar como ficaria bacana. Sou muito fã do original. Teve uma época, por volta de 1987, que eu escutava todo dia. Olhando para trás, parece que foi destino mesmo! Alguns tempos do Dub Side são pouco diferentes do original, mas mesmo assim o disco é "Oz-compatível".
Agora é a vez do Radiohead, certo?
Os produtores me chamaram para tocar no disco novo deles, a “jamaicanização” do disco OK Computer, do Radiohead. Depois decidiram que também iam mixar o disco comigo. Eu falei que gostaria, é claro! Mas preferia mixar no estúdio El Rocha. O disco também tem participações de Toots Hibbert, Meditations, Frankie Paul, Horace Andy, entre outros, cada um em uma faixa.
Vocês tiveram contato com o pessoal do Radiohead?
Falamos com o empresário para pedir autorização e ele falou: “É, eles vão gostar”. Gravamos todas as batidas, harmonias e faltava terminar de colocar as vozes quando recebemos uma ligação do empresário dizendo que a banda não queria mais que o disco fosse feito. Ele se desculpou por ter liberado e disse que tinha ouvido direto deles que não era para autorizar. Nisso, nós pegamos, eu e o produtor, as duas faixas que a gente já tinha, mixamos da maneira mais perfeita possível e mandamos direto para eles escutarem e verem o quão longe a gente já tinha ido. Tipo chorando, né? Por favor, por favor! Aí eles escutaram e acharam muito legal... Ufa! Eles ouviram e já estão gostando.
Como e quando você começou a se interessar por música?
Minha família é grande, tenho cinco irmãos e todo mundo fez aulas particulares, ou de piano ou de violão. Quando criança, ouvi muitas aulas em casa e, aos 4 anos, toquei uma linha no piano. Era a melodia da lição do meu irmão mais velho, aí todo mundo já percebeu que eu tinha um ouvido especial. Minhas aulas de piano não foram boas, principalmente porque o professor não me deixava tocar de ouvido, e eu não tinha paciência para ler... Desencanei. Só voltei a me interessar com 13 anos, quando ouvi Led Zeppelin. Desde então quis tocar baixo e não parei até hoje.
Você estudou música erudita, certo? Onde estudou?
Sim, fiz conservatório por seis anos no Manhattan School of Music e me formei com diploma de mestre. Estudei performance orquestral, contrabaixo e também composição, arranjamento, história... Quando saí voltei a tocar baixo elétrico, minha primeira paixão, com muito mais técnica e sapiência, claro. Também voltei a tocar minha música preferida, a música jamaicana. Eu tinha ouvido reggae pelo meu irmão mais velho, que colocava vários discos para tocar em casa. Conheci Bob Marley, Peter Tosh e Jimmy Cliff quando criança. E acho que é por isso que eu optei pelo baixo.
Você lembra qual foi a primeira música jamaicana que você ouviu?
Lembro de Rebel Music, do Bob Marley, saindo da sala do meu irmão e ele cantando bem alto. Nossa! Que engraçada essa lembrança!
Como foi a experiência de trabalhar com lendas da música jamaicana?
Tocar com Desmond Dekker foi incrível, com Laurel Aitken foi demais, ele me lembrava o meu pai. Trabalhar com os Skatalites no estúdio foi um sonho realizado! Aprendi tanto do jeito deles. Mas gravar com o vocalista/produtor Glenn Brown foi provavelmente o mais importante, pois aprendi como manter criatividade no estúdio sem parar. Depois de trabalhar com ele, tenho mais coragem para fazer o que eu quero no estúdio.
Estúdio ou palco? O que você prefere?
Claro que o estúdio ganha, porque qualquer coisa feita no estúdio é permanente e continua tocando pelo mundo inteiro para sempre. O palco é necessário e bom. Gosto por razões diferentes. Mas ficar em turnê não é muito produtivo, você fica 18 horas viajando para um show de 90 minutos. Eu prefiro ficar num estúdio 16 horas por dia, tratando o som que vai ficar para sempre...
Como você conheceu a música brasileira?
Quando eu estava no conservatório, eu estava acostumado a tocar música popular brasileira com bandas de jazz. E todo mundo queria aprender, porque era a música mais refinada e era atual, quer dizer, do nosso século. Porque em conservatório você está aprendendo música bem antiga.
E o lance de tocar bossa nova em Paraty?
Quando resolvi mudar para cá de vez, achei melhor ir para Paraty primeiro, um lugar que eu conheci com os Toasters. Achei melhor ficar com pessoas que não falam inglês porque queria melhorar o português antes de mudar para cá. Paraty é um lugar de turismo, tem banda em todo lugar, nos bares, e, para todo mundo, faltava o baixo. Então, eu cheguei com o baixo e toquei com todas as bandas antes mesmo de falar direito.
E o que você gosta de música brasileira atual?
Curto funk carioca, acho doido. Mas eu achei legal há anos. Eu estava aqui em São Paulo em 2002 e achava aquela batida muito legal, mas todo mundo daqui falava: “Isso é coisa de carioca”. Agora é uma coisa mundial. Mas eu não me ligo nas letras, me ligo no som.
No que você está trabalhando atualmente?
Eu estou compondo trilhas sonoras para uma empresa de Nova York, mas isso é trabalho. Minha obra é outra coisa. Minha obra hoje é juntar música brasileira com música jamaicana. Eu adoro samba rock, mas existe muita coisa dentro desse espectro, dentro do que é a batida do samba rock. Eu acho que tem espaço para eu colocar a minha batida dentro desse estilo.
É o “samba rock steady”?
Eu não queria divulgar muito a idéia ainda, mas também não dá para guardar. É isso. Eu estou escutando separadamente e quero juntar uma batida que, quando um brasileiro escute, ache que é um samba rock, e, quando um jamaicano escute, pense que é uma música antiga da Jamaica, um rock steady.
Uma música que marcou sua vida?
Confucius, do Don Drummond dos Skatalites. Foi quando eu percebi que a batida americana, que influenciou o ska, era uma influência mundial. Na época eu estava pirando na música folclórica da Europa oriental.
Você tocou no Sesc em janeiro, no festival Sons de Uma Noite de Verão. Como foi?
Para mim, foram duas coisas. A primeira foi tocar com o Firebug com casa cheia, algo muito legal. Mas, além disso, eu acabei de voltar para o Brasil, voltar do trabalho, e depois de três semanas eu estava no palco. Agora que estou no Brasil direto sempre posso fazer aparições ao vivo com eles e, de sexta, vou para minha festa predileta, a Java do Yellow P, para tocar escaleta.
Por fim, tem alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de falar?
Eu sempre gosto de falar a mesma coisa quando termina a entrevista. Hoje em dia todo mundo está baixando músicas de graça na internet e gostaria de dizer que eu apoio. Se você não está vendendo, é válido. Mas, se você consegue, procure baixar arquivos com qualidade alta, descomprimidos, porque aquele é o som que o artista gostaria que você ouvisse.
Então me diz o que você acha de copyright, copyleft, Creative Commons?
Não é que eu seja contra o copyright, mas eu sei também que não é todo mundo que tem grana para comprar um disco. Eu acho que música mesmo é um fenômeno físico. É onda, é acústica. Som é como o ar. Até hoje ar é livre, de graça. Então eu acho que música tem de ser livre. Se você quer pagar alguma coisa para a banda, chame para tocar em algum lugar. É um jeito legal de mostrar o trabalho.
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